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- O machismo e a competição feminina
Postado por: Clínica de Direitos Humanos UFPR
dezembro 02, 2015
Fonte: Liga Socialista |
Como meninas de 9 anos conseguem identificar e punir
vagabundas? Por Clara Lobo
Dias
atrás, uma amiga me confidenciou ter ouvido, no vestiário do dojo de artes
marciais que frequento, uma conversa de quatro moças sobre a minha pessoa. Elas
comentavam que eu era uma vagabunda por ter feito sexo com um dos colegas.
Puseram-se a enumerar meus outros defeitos: eu era feia, não tinha peito nem
bunda… enfim, elas não entendiam o que o rapaz vira em mim. Duas delas
namoravam colegas do dojo, o que, no meu parco e parvo entendimento, fez-me
crer que elas também tivessem feito sexo com eles, mas quem sou eu para alegar
tal similitude de ações se eu era indubitavelmente a vagabunda, enquanto elas,
indubitavelmente, não?
Confesso-lhes
que aquilo não me surpreendeu minimamente. Primeiro, porque já ouvira
disparates semelhantes sobre outra frequentadora. Segundo, porque já ouvira
conversas similares em outros lugares, outras situações, vindas de outras
mulheres sobre outras mulheres. Seu marido te traiu? Culpa daquela vagabunda.
Seu namorado olhou pra bunda de outra mulher? Também, com essa roupa de
biscate… Uma colega de trabalho conseguiu a promoção que você almejava? Aquela
vagabunda deu para o seu chefe, óbvio.
Uma
lúcida amiga sempre me diz: “Temo as mulheres que chamam outras de vagabundas”.
Eu também. Internalizar o machismo, do qual deveríamos nos livrar, por não
saber lidar com a nossa própria insegurança ante o (possível) desejo sexual do
macho é comportamento que vejo com frequência na mulher heterossexual.
Infelizmente, meter-se na vida dxs outrxs a fim de difamar ou depreciar a
imagem de outra mulher é prática corriqueira em ambientes de trabalho, rodas de
amigas, vestiários de academia. A mulher que deseja ser a menina dos olhos do
homem, a preferida (seja do pai, marido, chefe ou colega), não vê problema em
submeter a outra, considerada rival, a julgamentos enviesados e condenações
baseadas em maledicência gratuita e mesquinha.
Não
é absurdo que isso assim seja? Que mulheres se submetam de tal forma ao olhar
do outro, especificamente ao masculino, que passem a utilizar o que há de pior
nele para oprimir outra mulher? Que sua relação com mulheres seja marcada por
rivalidade e intriga? Que sua insegurança seja tamanha que ela só seja capaz de
tomar o lado de uma mulher se a outra não for considerada uma ameaça sexual? E,
o pior: que essas atitudes não sejam questionadas, mas vistas como usuais, como
naturais? Quantas vezes já ouvimos o famigerado “mulher é assim mesmo”? Como se
estivessem inscritas em nossa carga genética a insídia e a competição
patológica…
Quando
criança, certa vez fui brincar no play usando o uniforme do coral da escola:
camiseta e calças brancas. Uma das meninas me acusou de estar vestida de branco
com o intuito de deixar transparecer a minha calcinha. Eu tinha 9 anos. Ela,
10. Lembro-me de ficar constrangida, de me justificar: “Vim direto da escola,
este é o uniforme”. No dia seguinte, um grupo de meninas cochichava contra mim.
Ali, fui provavelmente chamada de vagabunda pela primeira vez. Pergunto-me: de
onde vem isso? Como meninas de 9, 10 anos conseguem identificar e punir
vagabundas? Com quem aprenderam este comportamento? Com as mães? Com as irmãs
mais velhas? Com as amigas? É possível que esse comportamento passe da mãe à
filha, que, mesmo ainda sem saber direito o que é sexo, intuitivamente
reconheça suas potenciais rivais e passe a vida repetindo e solidificando essa
conduta.
O
que ninguém parece perceber é que esse comportamento é cultural e, como fruto
de uma cultura, pode ser transformado. Nós podemos ser melhores do que isso.
Podemos deixar de ser reféns de impulsos mesquinhos e retrógrados, deixar de
ser coniventes e participantes de uma sociedade que ainda – inacreditavelmente
– pune as mulheres por serem senhoras de si mesmas. Que nega o machismo
enquanto o dissemina de forma difusa e sub-reptícia. Que considera o feminismo
algo fora de moda e desnecessário. Mas, para isso, cada mulher deve olhar não
só as outras, mas a si própria de forma diferente. Perguntar-se “de que tenho
medo? Por que tenho ódio? Por que não (a) suporto?” é um dos primeiros passos.
Pensem nas adolescentes que ainda sofrem bullying
das colegas de escola por serem tachadas de galinhas, putas ou coisa similar.
Nos Estados Unidos – em 2013, pelo amor de Deus! – meninas têm se suicidado por
esse motivo. Esta semana, li sobre a terceira adolescente estadunidense que se
mata num período de seis meses. Em todas as três histórias, algo em comum: elas
lutavam contra o estigma de sluts, foram ostracizadas pelos amigos
(amigas!), perseguidas e humilhadas pelxs colegas, e finalmente resolveram
colocar um ponto final na história por meio do suicídio.
É triste que nós, mulheres, abracemos voluntariamente
o papel de carrascos para solidificar ainda mais uma visão de mundo que nos
oprime e nos divide, contra a qual tantas mulheres (e homens!) lutaram
historicamente, e que beneficia somente a instituição patriarcal. Como feitores
negros que açoitavam e puniam suas/seus compatriotas escravxs, voltamo-nos
contra xs nossxs para agradar quem nos quer enjauladas. É preciso que mudemos,
e que esse ranço machista não se transmita às novas gerações, para que nem mais
uma única mulher seja vilipendiada por usar o seu corpo – aquele que Deus lhe
deu – como bem quiser e entender.
Fonte:
http://revistageni.org/06/o-cervix-da-questao-o-machismo-e-a-competicao-feminina/